José Pacheco e a Escola da Ponte
O educador português conta como é a Escola da Ponte, em que não há
turmas, e diz que quem quer inovar deve ter mais interrogações que
certezas
A Escola da Ponte é bem diferente das tradicionais. Como ela funciona?
JOSÉ PACHECO
Lá não há séries, ciclos, turmas, anos, manuais, testes e aulas. Os
alunos se agrupam de acordo com os interesses comuns para desenvolver
projetos de pesquisa. Há também os estudos individuais, depois
compartilhados com os colegas. Os estudantes podem recorrer a qualquer
professor para solicitar suas respostas. Se eles não conseguem
responder, os encaminham a um especialista.
Existem salas de aula?
PACHECO Não
há salas de aula, e sim lugares onde cada aluno procura pessoas,
ferramentas e soluções, testa seus conhecimentos e convive com os
outros. São os espaços educativos. Hoje, eles estão designados por área.
Na humanística, por exemplo, estuda-se História e Geografia; no
pavilhão das ciências fica o material sobre Matemática; e o central
abriga a Educação Artística e a Tecnológica.
A arquitetura mudou para acompanhar o sistema de ensino?
PACHECO Não.
Aliás, isso é um problema. Nosso sonho é um prédio com outro conceito
de espaço. Temos uma maquete feita por 12 arquitetos, ex-alunos que
conhecem bem a proposta da escola. Esse projeto inclui uma área que
chamo de centro da descoberta, onde compartilharemos o que sabemos. Há
também pequenos nichos hexagonais, destinados aos pequenos grupos e às
tarefas individuais. Estão previstas ainda amplas avenidas e alguns
cursos d'água, onde se possa mergulhar os pés para conversar, além de um
lugar para cochilar. As novas tecnologias da informação devem estar
espalhadas por todos os lados para ser democraticamente utilizadas pela
comunidade, o que já conseguimos.
Os professores precisam de formação específica para lecionar lá?
PACHECO Não.
Eles têm a mesma formação que os de outras instituições. O diferencial é
que sentem uma inquietação quanto à educação e admitem existir outras
lógicas. Nossa escola é a única no país que pode escolher o corpo
docente. Os candidatos aparecem geralmente como visitantes e perguntam o
que é preciso para dar aulas lá. Digo apenas para deixarem o nome. No
fim de cada ano fazemos contato. Hoje somos 27, cada um com suas
especializações.
Como os novos professores se adaptam à proposta da escola?
PACHECO Há
profissionais que estiveram sozinhos em sala durante anos e quando
chegam constatam que sua formação e experiência servem para nada. De
cada dez que entram, um não agüenta. Outros desertam e regressam depois.
Mas nós também, por vezes, temos que nos adaptar. Há dois anos
recebemos muitas crianças e professores novos, não familiarizados com a
nossa proposta. Apenas a quinta parte do corpo docente já estava lá
quando isso aconteceu. Passamos a conviver com mestres que sabiam dar
aula e estudantes que sabiam fazer cópias. Foi necessário dar dois ou
três passos para trás para que depois caminhássemos todos juntos.
Precisamos aceitar o que os outros trazem e esperar que eles acreditem
em nossas idéias. Essa é a terceira vez que passamos por isso.
Qual o perfil dos alunos atendidos pela Escola da Ponte?
PACHECO Eles
têm entre 5 e 17 anos. Cerca de 50 (um quarto do total) chegaram
extremamente violentos, com diagnósticos psiquiátricos e psicológicos.
As instituições de inserção social que acolhem crianças e jovens órfãos
os encaminham para as escolas públicas. Normalmente eles acabam isolados
no fundo da classe e, posteriormente, são encaminhados para nós. No
primeiro dia, chegam dando pontapés, gritando, insultando, atirando
pedras. Algum tempo depois desistem de ser maus, como dizem, e admitem
uma das duas hipóteses: ser bom ou ser bom.
Como os estudantes vindos de outras escolas se integram a um sistema tão diferente?
PACHECO Não
é fácil. Há crianças e jovens que chegam e não sabem o que é trabalhar
em grupo. Não conhecem a liberdade, e sim, a permissividade. Não sabem o
que é solidariedade, somente a competitividade. São ótimos, mas ainda
não têm a cultura que cultivamos. Quando deparam com a possibilidade de
definir as regras de convivência que serão seguidas por todos ou não
decidem nada ou o fazem de forma pouco ponderada. Em tempos de crise,
como agora, em que muitos estão nessa situação, precisamos ser mais
diretivos. Só para citar um exemplo, recebemos um garoto de 15 anos que
tinha agredido seu professor e o deixado em estado de coma. Como um
jovem assim pode, de imediato, participar da elaboração de um sistema de
direitos e deveres?
A escola nem sempre seguiu uma proposta inovadora. Como ocorreu a transformação?
PACHECO Até
1976, a escola era igual a qualquer outra de 1ª a 4ª série. Cada
professor ficava em sua sala, isolado com sua turma e seus métodos. Não
havia comunicação ou projeto comum. O trabalho escolar era baseado na
repetição de lições, na passividade. Naquele ano, havia três educadores e
90 estudantes. Em vez de cada docente adotar uma turma de 30, juntamos
todos. Nosso objetivo era promover a autonomia e a solidariedade. Antes
disso, porém, chamamos os pais, explicamos o nosso projeto e perguntamos
o que pensavam sobre o assunto. Eles nos apoiaram e defendem o modelo
até hoje.
Qual é a relação dos pais com a escola?
PACHECO Eles
participam conosco de todas as decisões. Se nos rejeitarem, teremos de
procurar emprego em outro lugar. Também defendem a escola perante o
governo. Neste momento, os pais estão em conflito com o Ministério da
Educação. Ao longo desses quase 30 anos, quiseram acabar com nosso
projeto. Eu, como funcionário público, sigo um regime disciplinar que me
impede de tomar posições que transgridam a lei, mas o ministro não tem
poder hierárquico sobre as famílias. Portanto, se o governo discordar de
tudo aquilo que fazemos, defronta-se com este obstáculo: os pais. Eles
são a garantia de que o projeto vai continuar.
Como sua escola é vista em Portugal?
PACHECO Há
uma grande resistência em aceitar o nosso modelo, que é baseado em três
grandes valores: a liberdade, a responsabilidade e a solidariedade.
Algumas pessoas consideram que todos precisam ser iguais e que ninguém
tem direito a pensamento e ação divergentes. Há quem rejeite a proposta
por preconceito, mas isso nós compreedemos porque também temos os
nossos. A diferença é que nós nunca colocamos em cheque o trabalho dos
outros. Consideramos que quem nos ataca faz isso porque não foi nosso
aluno e não aprendeu a respeitar o ponto de vista alheio.
Qual é o segredo de sucesso da proposta seguida pela Ponte?
PACHECO Nós
acreditamos que um projeto como o nosso só é viável quando todos
reconhecem os objetivos comuns e se conhecem. Isso não significa apenas
saber o nome, e sim ter intimidade, como em uma família. É nesse ponto
que o projeto se distingue. O viver em uma escola é um sentimento de
cumplicidade, de amor fraterno. Todos que nos visitam dizem que ficam
impressionados com o olhar das pessoas que ali estão, com o afeto e a
palavra terna que trocam entre si. Não sei se estou falando de educação
ou da minha escola, mas é isso o que acontece lá.
O modelo da Escola da Ponte pode ser seguido por outras escolas?
PACHECO Não
defendo modelos. A Escola da Ponte fez o que as outras devem e podem
fazer, que é produzir sínteses e não se engajar em um único padrão. Não
inventamos nada. Estamos em um ponto de redundância teórica. Há muitas
correntes e quem quer fazer diferente tem de ter mais interrogações do
que certezas. Considero que na educação tudo já está inventado. A Escola
da Ponte não é duplicável e não há, felizmente, clonagem de projetos
educacionais.
Hoje a escola pode funcionar sem o senhor?
PACHECO Fui
e continuo sendo um intermediário. Não tenho mérito por isso, apenas
cumpro a minha missão. Vou me afastar dentro de um ano e estou
amargamente antecipando essa despedida. Todo pai tem de deixar o filho
andar por si próprio e, nesse momento, a Ponte caminha sozinha. Depois
quero continuar desassossegando os espíritos em lugares onde há gente
generosa, que só precisa de um louco com a noção da prática, como eu.
Agora ninguém pode dizer que uma experiência como a da Escola da Ponte
não aconteceu, porque ela existe e provamos que é possível.
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